Tortura Omissiva: (in)constitucionalidade da pena

Segundo a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimento são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLIII, dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. 

Em atenção ao comando constitucional, foi editada a Lei nº 9.455/1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências.

O artigo 1º, caput, define o crime de tortura própria, cujas condutas são caracterizadas pelos verbos “constranger” e “submeter”. A pena prevista é de reclusão, de dois a oito anos.

O § 1º do mesmo artigo prevê a mesma pena ao agente que “submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.”

Questão polêmica na doutrina é o crime de tortura imprópria, na modalidade omissiva, prevista no § 2º, sobretudo no que diz respeito ao verbo “evitar”: “Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

O debate gira em torno da pena diferenciada – e branda – prevista àqueles que, podendo e devendo evitar o crime de tortura, se omitem.

Concordarmos com a crítica doutrinária, dentre elas a de GUILHERME DE SOUZA NUCCI, segundo o qual “é incompreensível a condescendência do legislador justamente com a pessoa (normalmente, autoridade) que tem poder para fazer cessar a tortura e se omite, ou que pode apurar os responsáveis pelo ato repugnante e silencia”[1].

Vale ressaltar que a pena prevista para o crime de tortura na modalidade omissiva é de detenção de um a quatro anos, ou seja, mais branda daquela prevista para o crime de furto simples, que é de reclusão de um a quatro anos. O furto qualificado, por sua vez, prevê reprimenda de reclusão de dois a oito anos, ou seja, o dobro.

Para parte da doutrina, com a qual concordamos, a pena prevista para o crime de tortura na modalidade omissiva é inconstitucional. O mandado constitucional de criminalização é claro ao dispor que devem responder pelo crime de tortura “os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.” A omissão tratada pela Carta Magna é a omissão imprópria – crime comissivo por omissão – (art. 13, § 2º do Código Penal), em “que a punibilidade advém da circunstância de o sujeito, que a isto se encontrava obrigado, não ter evitado a produção do resultado, embora pudesse fazê-lo. Ele se omite, ocorrendo o resultado. (…) Ocorre que a lei considera que o não-fazer em o mesmo valor do fazer”. (JESUS, Damásio de. Código penal anotado – 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 38).

É o que se conclui da hermenêutica jurídica.

Contudo, o legislador fez constar na “Lei de Tortura”, tipo e pena específicos para a modalidade comissiva por omissão, violando o comando constitucional que, na verdade, estipula igual punição tanto para o agente que comete propriamente o delito, quanto àquele que, podendo evitar, se omite, colaborando para o seu resultado naturalístico.

Nesse sentido:

“… a exceção pluralística adotada pelo legislador inferior, além de inoportuna e injusta, viola mandamento constitucional expresso. Para evitar a violação ao Texto Magno, entendemos que o dispositivo em estudo somente fica reservado para aquele que se omitiu na apuração dos fatos, ou seja, para aquele que, tomando conhecimento após o seu cometimento, nada fez para esclarecer a verdade e punir os culpados. Quanto àquele que presenciou a tortura e nada fez, aderindo à conduta principal, mediante dolo direto ou eventual, a solução é responsabilizá-lo pelo mesmo crime do qual participou com sua omissão e não por essa forma mais benéfica.” (CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial, volume 4 – 7. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 743)

Em suma, entendemos que o agente que podia evitar o crime e assim não o fez, deve responder como coautor do crime previsto no caput do art. 1º da Lei nº 9.455/97, e não como incurso no § 2º, haja vista a demonstrada inconstitucionalidade.

Texto de Tiago Trindade

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, 5. ed. – São Paulo: RT, 2010, p. 1202.

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Tiago Trindade
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